A criança que fui chora na estrada.
Deixei-a ali quando vim ser quem sou;
Mas hoje, vendo que o que sou é nada,
Quero ir buscar quem fui onde ficou.
Ah, como hei-de encontrá-lo? Quem errou
A vinda tem a regressão errada.
Já não sei de onde vim nem onde estou.
De o não saber, minha alma está parada.
Se ao menos atingir neste lugar
Um alto monte, de onde possa enfim
O que esqueci, olhando-o, relembrar,
Na ausência, ao menos, saberei de mim,
E, ao ver-me tal qual fui ao longe, achar
Em mim um pouco de quando era assim.
A criança que fui chora na estrada” é um soneto (2 quadras e 2 tercetos) de versos decassilábicos, com o esquema rimático abab, baba, cdc, dcd, em que constam rima cruzada, interpolada e emparelhada. O ritmo é proporcionado por frases complexas e pontuação não excessiva, mas necessária.
O tema do poema baseia-se na infância, na nostalgia do bem perdido e do mundo fantástico da infância, que provoca angústia existencial, entre outros sentimentos. Pode ser dividido, conforme a interpretação, em duas partes:
1 – Sentimento e querer/vontade do sujeito poético em que se fala, na 1ª quadra, da nostalgia da infância, e, na 2ª quadra, sobre a estagnação psicológica por não encontrar a infância.
2 – Condição/possibilidade de conseguir observar a infância perdida através do presente e, ao vê-la, poder recuperá-la ou encontrar um pouco dela em si.
Versos 1 e 2 Oposição temporal (Passado – Presente). A infância não desapareceu por completo, apenas está submersa na pessoa que é agora, à espera de ser recuperada, já que o indivíduo decidiu ser diferente e abdicar dela; porém, a criança, que deveria ser feliz, chora, ou seja, representa sofrimento e abandono indevido.
Versos 3 e 4 O poeta sente-se descontente por não ser mais do que é, deseja regressar ao tempo onde foi feliz e voltar a ser criança que não pensa, só sente.
Versos 5 – 8 Mesmo assim, há quem erre ao tentar regressar ao passado e não consiga inclusive alcançar um pouco da criança que há em si, acabando na ignorância, sem saber de onde veio, nem onde está. Representa a estagnação e a ausência de felicidade, já que só existe a dúvida e não pode sentir nem progredir.
Versos 9 – 14 Caso seja possível relembrar aquilo que se esqueceu observando o passado, sem sair do presente, poderá, pelo menos, perceber quem é agora, visto que não é aquilo que foi (já não é a tal criança). Assim, verá ao longe (na memória e nas recordações) quem foi, podendo encontrar na sua imagem presente a influência (ou até mesmo parte) da imagem do passado.
GRAMÁTICA
· Frases negativas e declarativas com vocabulário simples. Uso dos verbos copulativos (ser, estar, ficar, ir) – demonstram a dúvida do sujeito poético ao longo do poema, já que colocam em evidência a oposição temporal.
· Oposição temporal: Neste poema, a grande especificidade da gramática observa-se na frequente utilização do pretérito perfeito, do presente e do futuro, que criam uma ligação e dificuldade em criar um distanciamento psicológico e divisão total desses momentos (ou seja, estão interligados), sugerindo a indecisão do sujeito poético quanto ao seu percurso temporal.
RECURSOS ESTILÍSTICOS
· Repetição do verbo “ser” (vv. 2, 3 e 4) – intensifica a angústia existencial do sujeito poético e a busca pela resposta à pergunta chave “quem sou?”.
· Repetição de “ao menos”(vv. 9 e 12) – intensifica a ideia de um mínimo que foi estabelecido como objectivo e que se espera que aconteça.
· Interrogação retórica “como hei-de encontrá-lo?” (vv.5) – A resposta é dada pelo poeta ao longo do poema: não há como encontrá-la pois falhou o regresso e, assim sendo, a pergunta pretende apenas criar uma aproximação do receptor e reforçar a ideia da vontade de encontrar a infância perdida, a qual pode ser encontrada, caso se descubra como e não se erre ao regressar a esses tempos.
· Pleonasmo “erra a vinda = regressão errada” (vv. 5/6) – Reforça a ideia frustrada de voltar à infância perdida através da repetição do mesmo significado com diferentes significantes.
· “alma parada” (vv.8) – É o próprio sujeito poético que parou, mas atribui tal facto à alma/coração, ao inconsciente, pois é aquilo que sente e cria as emoções do sujeito.
"Trata-se de um soneto ortónimo de Fernando Pessoa, de produção tardia, datado de 22/09/1933.
Como em muitos poemas ortónimos de Pessoa, a temática dança à volta da infância perdida e cristalizada na memória do poeta enquanto período de ouro da sua vida, em relação ao qual há sempre o desejo velado de regresso impossível.
No entanto - e isto é algo que caracteriza a escrita ortónima - não há grande grau de emoção na voz poética utilizada. É como se um grande desencanto permeasse toda a escrita de Pessoa em seu próprio nome, um desencanto que parece mesmo aproximar-se de um completo e total esvaziamento de tudo, incluindo as emoções. Pessoa é quase sempre racional, mas a sua escrita ortónima tende a tornar o racional assustadoramente vazio, plenamente vazio, o que não acontece na escrita dos seus heterónimos, que é sempre polvilhada por vislumbres de uma qualquer intenção, por muito artificial.
Análise
A criança que fui chora na estrada.
Deixei-a ali quando vim ser quem sou;
Mas hoje, vendo que o que sou é nada,
Quero ir buscar quem fui onde ficou.
A primeira quadra do soneto serve de enquadramento à temática abordada no mesmo. Pessoa vê-se comparativamente em dois estádios diferenciados da sua vida, em "duas idades": o Pessoa adulto e o Pessoa criança. É o Pessoa adulto que escreve e que, vendo a sua dor passada, deseja-a mesmo assim, em contraponto com a sua dor presente. A frase "a criança que fui chora na estrada" resume de maneira sucinta o sentimento que o percorre - a felicidade da infância é mesmo assim uma felicidade dolorosa. Essa sobreposição "criança"/"adulto" dá a beleza ao poema, mas também o torna translúcido, como se as camadas, complementando-se, se anulassem na leitura final. Pessoa sente ter-se abandonado criança para ser adulto - nota-se aqui a noção consciente da quebra da infância em Pessoa, que na realidade aconteceu. Pessoa, vendo-se adulto, diz preferir ir ser novamente criança. Mas tal não é possível, ninguém regressa ao passado.
Ah, como hei-de encontrá-lo?
Quem errou A vinda tem a regressão errada.
Já não sei de onde vim nem onde estou.
De o não saber, minha alma está parada.
Mas mesmo nessa impossibilidade, o poeta pode sonhar. Mesmo sabendo que não pode regressar. Por um lado está perdido na sua vida adulta, no outro recorda a sua infância dolorosa, que embora feliz o colocou de certo modo na situação actual. Não há escolha possível, e este impasse leva à sua "alma (...) parada".
Se ao menos atingir neste lugar
Um alto monte, de onde possa enfim
O que esqueci, olhando-o, relembrar,
Na ausência, ao menos, saberei de mim,
E, ao ver-me tal qual fui ao longe, achar
Em mim um pouco de quando era assim.
A sua identidade, embora dissolvida neste intermezzo existencial, existe assim como uma névoa distante. Ele vazio em si mesmo, quando se lembra pode assumir ao menos um pouco de existência. Pode ver ao menos "um pouco de si", ao menos "saberá de si". Há um vazio - é certo - mas o vazio já não será completo, mesmo que seja doloroso. É um vazio ao menos preenchido ao longe com a promessa de poder lembrar-se do passado."
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